segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Um luto ligeiro pelas mortes pequenas.

E aqui me esforço por não enumerá-las, caro leitor. A cada consciência, o peso de seus próprios ressentimentos. Minha memória é um grande navio naufragado, onde se aderem camadas e camadas de vida. Essas camadas novas não são minha memória, são criações autônomas, avulsas, que dela fazem apenas um espaço inaugural de existência. As Cortes do pensamento são de pronto reduzidas à própria natureza dos fatos. O passado nunca morre, essa é a intratável afirmativa com que procuro conviver sem maiores inquietações. O passado é uma grande angústia que nos atinge a todos nós. Não bastasse carregá-lo nas costas, por detrás dos olhos, há no passado uma revolta que o faz revirar-se, mostrar-se a nós, cada vez mais explícito e doloroso. O conhecimento que temos do passado, a vivência dele, é parcial. Ele procura, portanto, que revelemos todas as faces do instante, todas suas incontinências. O passado, contudo, não é esse instante, não se resume a ele, antes é um fluxo variável de pesos, medidas e desacertos. Por vezes, por raras vezes, desconstrói-se ele-mesmo, ao olhar mais atento de si. Justifica-se, desmistifica, desaparece quando sob a luz. Um fluxo viscoso, impertinente, ácido. O outro. Um desconhecido a habitar minha casa, transitando entre os cômodos, pesquisando a dispensa, deitado à cama como se desde sempre fosse sua.

Eu não posso, ou não me permito, revoltar-me contra esse estranho, que é produto de minha própria precariedade. Estabeleço, assim, um laço de sangue, deixo que esse desconhecido se torne ainda mais habituado ao lar. Nos entretemos, vamos dormir. Ele não me diz muito, por dias se silencia, em certas noites fica inquieto e me fala impropérios que não quero ouvir. Me desagrada, não consigo despejá-lo. Habituei-me ao lar, à partilha cotidiana das dependências da casa. Nos esbarramos, não tenho medo. Não me apavora a imagem dele adormecido, nu, deitado no sofá da sala de estar. Já não me pergunto quando ele irá, já não recordo o dia em que chegou. Nossa trajetória - minha e dele - flutua sobre o tempo, imersa, por sobre. Não nos protegemos, não nos ameaçamos. Ainda sou inacabada, ele não me completa, ele cresce, míngua, não sei vai, não lhe peço.