domingo, 13 de setembro de 2015


Sina é o destino que nos sobra,
quando nenhum dos que a gente escolheu
deu onde a gente queria.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

um dia acompanhei papai ao rio
fomos ao detran
papai atravessou a rua fora do sinal
e me deixou para trás
presidente vargas
eu criança fora da faixa
papai do outro lado
duas pistas entre nós
presidente vargas
e papai sem nem se dar conta

desde então
tem sido meu fado
correr perigos
acompanhar homens
que só sabem andar sozinhos

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Pé-direito alto em descontínuo VIII

Voltávamos da cidade quando João disse que passaríamos para ver Madalena. Eu disse que não tinha paciência para Madalena, e João rebateu que Madalena era minha única irmã, e que em respeito à memória de meus pais deveríamos, ao menos de tempos em tempos, procurá-la. Eu disse que não era certo visitar os outros sem aviso, ainda mais na hora do almoço. Mas João sabia que Madalena não era de protocolos e não se incomodaria com nossa chegada inesperada. Ao contrário, Madalena se alegraria.

João inventa de ter paciência para pessoas com quem não tenho paciência. É uma forma de remendar minha frieza e minhas ausências. João é conciliador, compensa meus vícios com seus cuidados. Os outros reparam. Não me importo e faço até gosto. Que os outros vejam como eu e João nos compomos. Há entre certos casais combinações mudas que tramam e sustentam uma relação. Muitas coisas miúdas e mudas laçam nossos anos de união.

Bati o pé. Difamei Madalena. Esperneei, mesmo sabendo que seria inútil, porque João faz coisas contra minha vontade. Lá chegamos. À casa de Madalena, o muquifo em que ela transformou a herança que lhe coube de nossos pais. Tudo fora do lugar, Madalena é mesmo dada à desordem. João muito simpático, eu resistente. Eu sempre resistente a algo, a todo o momento. Não há um momento, meu Deus, na vida, em que eu não esteja resistindo a algo. Eu resistindo ao nojo que a casa me provocava. Madalena parecia não ver. Madalena era uma cega eufórica. Só bradava 'Que bom que vocês vieram, vocês nunca vêm, Olha, olha a tv que eu comprei, Olha, olha o computador novo, olha, Vocês não fazem ideia do que é essa tv, Bebeto está me ensinando a usar o Facebook no computador novo, postamos fotos do passeio de domingo, Olha como eu tô moderna, olha'.

Bebeto é o novo caso de Madalena. Um menino que ela colocou para dentro de casa. Mas gente, esse menino não tem família? Fiz que fiz vista grossa para aquele desaforo todo. Agora você vê, Madalena com um rapazinho recém saído da puberdade. Esse menino completou o científico, pelo menos? A tonta não vê que o que ele tem de músculos tem de aproveitador. Sem camisa, almoçando no sofá da sala, copo de refrigerante no chão. Prato Duralex, talheres com cabo de plástico. Mas onde foi que Madalena aprendeu ou aprendeu a admitir esses modos suburbanos?! Às vezes, eu penso que ainda bem que papai e mamãe já se foram para não testemunharem tamanha pouca vergonha. O gigolô é mais novo que Toninho. Madalena não enxerga que está velha e criando filho dos outros. 'Ah, fica, vai, vocês quase não vêm, Aproveitem, tem almoço, Hoje é dia da empregada, ela faz comida a mais, para congelar'.

'João, me tira agora daqui'. E João sorrindo, quase debochando 'A gente adora carne seca'.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Às vezes, me lembro da casa de G. Dos móveis despencando, do sofá-cama duro, do cheiro de cigarro, da janela que dava para um morro e um mato, para um oposto de cidade. Às vezes, me lembro da casa de D. Do cheiro do armário, da janela bem grande que ele quase nunca abria, dos móveis que trouxera da casa dos pais, de abraçar a mim mesma forte por dentro para não despedaçar quando encontrava um brinco, um batom ou uma jaqueta de outra mulher. Às vezes, me lembro da casa de B., do cheiro de material de construção, da cafeteira, da sanduicheira, do fogão, da máquina de lavar, do espelho do lado de fora do armário, de achar que estávamos estreando uma nova casa e uma nova vida. 

Trago todas as casas em mim, e não tenho onde morar. Aonde vou, não demoro. Logo parto, logo desgarro. Lanço-me ao mundo, resiliente e indefinida, sem audácia ou ousadia, e ainda que o mundo seja apenas um município do interior. Assumo que o faço por ponderada valentia, mas temo ser sina. Aprendi a partir, aprendi a deixar casas, cheiros, armários, sonhos e rotinas. Não tenho onde morar, então caminho. Vou me acostumando a nunca mais querer ou precisar de uma casa para morar. Nada possuo, nem as casas que carrego comigo. Não há o que me represe. Periga eu esquecer como se fica, como se habita e como se cuida. E de tanto partir, não ter mais volta. Por sina, ou valentia.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

diálogos inescrupulosos II

-eu ainda penso em você.
-eu ainda te acho um idiota.
um dia pensei
que sabia amar
quem possuía vocação para a espera

alguns homens tiveram
minhas tantas horas
de preparo e zelo

os homens se foram
restou o tempo

é noite
ninguém virá

não há desespero

na espera
eu aconteço

sábado, 5 de setembro de 2015

Ana
um dia
sonhou em ter um namorado
que lhe presenteasse com um par de patins
e a levasse para tomar sorvete na praça

Ana
nunca soube
no entanto sempre desconfiou
que o verdadeiro amor
era adolescente

Mas Ana cedo amadureceu
caíram em desuso os amores não consumados
e os homens a quem se entregou
foram todos
diferentes versões
de um mesmo
e imenso desastre

Ana não tem nojo dos casais que fazem
carícias escandalosas nas ruas à luz do dia
nem julga as meninas que sonham em se casar com seus namorados

porque Ana
que aprendera a viver sobre os escombros dos amores desmoronados
depois de tantos finais
não zomba do que aos outros parece ridículo
não apedreja o que aos outros é imoral

porque se ainda há ilusão, no mundo
se ainda há lascívia nas calçadas sob o sol do meio-dia
ainda a vida pulsa

e mesmo que os amores sejam sucessivos e incansáveis desastres,
apesar do desastre e maior que ele
há vida

os desastres são a ressaca dos sonhos
-o lamento pujante, inconformado, da perda

vencer o desastre requer vivê-lo

mas logo isso não é novo
e logo se aprende:
viver é algo
que se faz com insistência