terça-feira, 9 de dezembro de 2014

construíste
trapiches invisíveis
como dedos
sem me alcançar

traço rotas
me desoriento

só eu sei o que é 
ser navio e não saber ancorar

não vi teus dedos
nem os busquei
o oceano é imenso
e teus dedos, mínimos
sou cego cego
não sei ver nem ficar

e insisto bravio
na vida à deriva
barco querendo tempestade
costa dispensando quebra-mar

não há gentileza que me represe
prefiro a rudeza dos desenganos

sou uma empáfia
um gesto bruto
não sei ver nem ficar
Há tantas formas de se dizer adeus
O silêncio é uma delas

Há tantas formas de se dizer amor

O silêncio é uma delas

Ninguém ama aos berros

Ninguém parte sem emudecer

É no silêncio que se ama

É no silêncio que se parte

Amei mais

quando não disse pa-la-vra
Parti de fato
quando já não tinha mais força ou vontade para te fazer ouvir minha voz

Pode-se dizer adeus, pode-se dar muitos passos na direção oposta

Pode-se fazer declarações, pode-se virar do avesso para se demonstrar o que se sente

Mas no fim das contas

as coisas 
só acontecem
dentro da gente
(e lá dentro
as coisas acontecem
em silêncio)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

diz-se que ninguém é substituível. diz-se que todos são substituíveis. substitui-se o lugar, o cargo, o título, a função, o espaço, não a presença, o olhar, o intangível. e te conheço tão odiosa e profundamente, a ponto de saber que haverá, sempre, dentro de ti, a marca de minha ausência. digo isso não somente por quem eu sou, mas por quem és. és um tipo mesquinho de homem: o tipo que não se dá. mas quanto a mim ensaiaste, projetaste ser um homem melhor do que és. sem sucesso. te ostentavas firme e inabalável. e eras. porque passaste pela vida anestesiado, em constante negação. não eras forte, eras apenas alheio. eu não. eu me firo com o mundo, eu me desmancho, eu me refaço, eu incalculáveis vezes renasci. e tu te atraías, mesmo sem se dar conta, por essa verdadeira força: a força que é não ser imune, mas resistir. tu te atraías pelo desafio das nossas diferenças. ou melhor: a princípio, tu não vias desafio em mim. apenas distração. só muito depois é que viste desafio, quando, para mim, tu já eras somente distração.

depois de me perder
eis tua autocondenação:

nunca
nada nem ninguém no mundo
além de mim
terá minha pulsação

sábado, 22 de novembro de 2014

a memória
às vezes
é uma praia esquecida
com um farol
que vira e mexe vira e ilumina
um mar de escuridão

quanto mais necessário o farol
(nas noites sem lua)
mais perigosa sua luz

quanto mais negra a memória
quanto mais abandonada
mais susto se leva
à descoberta da luz
como se nus
fôssemos pegos em flagrante
e tudo o que é
proibido
acobertado
e degradante
fosse
de repente
inevitável
você se intriga
eu não me entrego
a gente briga
você bolero
eu canto a pedra
você na trave
eu toda prosa

você mais tarde
a gente brinca
você não nota
eu falo sério
você marmota
eu tanta coisa
você em outra

você procura
a gente some
eu desconverso
você assume
a gente sabe
mas eu não digo

a gente junto
você enrola
eu quebro o gelo
você demora
a gente suspende
e vai embora

você volta
eu não vejo a hora
a gente se entende
você se apavora
a gente mente
você desaprova

eu
presente
você
escape
eu
transparente
você
disfarce

eu
volúvel
você
indissolúvel
eu
fluidez
você
solitude

a gente
desencontra
a gente
busca
a gente
contorna
r-e-v-i-r-a-v-o-l-t-a
minha devoção
te aborrecia

e agora
meu desprendimento
te irrita

tens que decidir qual insatisfação preferes
não se pode ter tudo na vida

Diário do irrelevante

Meu armário de despensa foi tomado por traças e passei dois dias em função de sua limpeza e descarte de alimentos. Como dizer a Demétrio que esse é o tipo de coisa que ocupa minha vida? O que prende Demétrio?
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Fui ao supermercado e ao açougue. Cozinhei por horas. Demétrio nunca provará o sabor da minha comida. Demétrio aprecia condimentos?
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Inventariei a casa e listei os utensílios faltantes: cortadores de legumes, uma nova tábua para carnes, novas facas, nova peneira, fio de extensão. Fui ao bazar. Comprei-os. Limpei os interruptores, o telefone, o liquidificador e a sanduicheira. Estão como novos. Saberia Demétrio admirar meu capricho? Ou para ele esses cuidados seriam irrelevantes?
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Organizei uns papéis, listei meus afazeres, liguei para Cláudia, Francesca e Antônia. Com Antônia, gastei três horas. Comentamos as notícias, falamos sobre a doença de seu pai e sobre como as relações têm se depreciado. Demétrio daria conta de uma longa e profunda conversa? Demétrio fugiria de quais temas?
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Fui ao cartório. Quero deixar tudo pronto para quando eu morrer. A vida das pessoas se trava muito por causa de burocracias. Eu que trabalhei décadas com inventários bem sei. Vou deixar tudo organizado. Não quero que meu nome e minha morte se arrastem em prateleiras empoeiradas ou em nuvens eletrônicas criptografadas e diários e notificações oficiais. Quando eu morrer, quero que meu nome vá comigo. E que fique só, em meu lugar, um pousar de passarinho. Qual seria o apego de Demétrio pelo próprio nome, pelos próprios bens? Que legado Demétrio deixará?
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Categorizei minhas fotografias. As digitais e as físicas. Surpreendi-me com meu olhar. Não por tê-lo perdido ou me distanciado, mas por ter me reconhecido ainda mais naquelas fotografias - minhas pequenas traduções do mundo. Cada clique é um abraço. O que prende o olhar de Demétrio? Demétrio vê beleza no que eu vejo?
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Ouvi música triste e chorei. O que atinge Demétrio?
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Adiei o dia todo uma ida à cidade vizinha. O dia estava muito quente. Tomei três picolés e dormi. Demétrio tem preguiça?
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Comprei bilhetes para uma viagem. Duas horas depois, cancelei. O entusiasmo não durou. Ou deixei de ir para que o entusiasmo não desvanecesse. Havia alguém que me esperava, naquele destino. Desapontei-o. Demétrio sente culpa com frequência? Demétrio desiste das coisas?


sábado, 4 de outubro de 2014

Se me arrependi, foi de não ter te traído. Hoje, penso que teria sido ao menos divertido. Ter te traído com todo e qualquer tipo de homem. Perdedores, artistas, atletas, loucos. Tipos de homens que desprezarias. Se me arrependi, foi de não ter trocado teu nome com o de um antigo amor, como planejei tantas vezes, para te ferir. Se me arrependi, foi de não ter te maltratado, como faço agora, em pensamento.
~
Tenho sido perversa. E me divertido muito mais.
Primeiro eu quis
Um resto de luz
Uma coisa qualquer em que eu pudesse me pegar

Nada nem ninguém me devolveu a fé

Tive que buscar Outras palavras
Banhar-me em Outros rios
E terminar na correnteza inevitável
Que leva à saudade vazia

Lamentei a demasia
Envergonhei-me de minha doação
Prometi não ser a mesma
Vesti-me de apatia
Deslizei sobre Outros corpos
Ninguém mais me possuía

Nenhuma dor me atingia
Distraí-me com homens ricos, homens belos, fantasias
Brilho, bebida e glória
Nem amor nem agonia

Desaguei-me na saudade
Na correnteza
Das horas frias

Nem amor nem agonia
Tinha ao menos a lembrança
Das histórias
Daqueles dias
quem sou eu
em branco
à noite

ou então coçando a dobra dos peitos suados
andando encurvada pela casa
sentindo pontada no estômago
com a cabeça desfarelada

a confusão do mundo
leva e traz as pessoas
engana
dilacera
desencontra
atropela

tem é que se buscar um espaço
não de ordem
mas de trégua

uma brecha
uma centelha
um desatino
uma quimera

tem que se guardar na memória
alguns instantes de luz
que vão iluminar o caminho, depois

todo desejo de felicidade
é a lembrança de alguma felicidade
esses últimos tempos
têm sido tempos de mudanças

quando um laço desenlaça, que é que ele faz?
-ele balança.
Se te amava
Nem me lembro

Amo abajures, amo azuis, amo o relento
Posso mesmo ter te amado

Se te amava
É bem possível
Que por muito tempo
Não te visse como és
(E te achasse mais incrível)
Mas um outro alguém
Revestido de minha poesia
Transbordamento do meu desejo

É bem possível que tenha te amado
Amo margens, amo vilas, amo o tempo
Por que não amaria
Um menino desarmado
Brincando de soldado
Inventando mil batalhas
Tentando dominar o vento?

Se te amava
É que eras
Apenas um pretexto
Para imensidões e profundezas
Que de dentro de mim
Queriam reunião

Se te amava
(Se é que te amei)
É que em algum momento
Eu tenha pensado
Que me conceder a ti
Me faria menos só

Se te amava
Me enganei

Se te amei
(E já nem me lembro)
Era
Uma febre que passou
Uma insistência qualquer
Um erro necessário

Se ter te amado
(Como eu não me lembro)
Me fez quem sou agora
-banho de cachoeira,
trilha íngreme,
mar aberto -
ter te amado me curou
da ilusão do amor

E eu já sem tanta ilusão
Agora sou mais feliz
Não porque sonho menos
Mas porque sei lidar
Com a verdade e o horror

Juro que tentei
te amar sem críticas
te amar apesar de tua dureza
te amar apesar de tuas dúvidas
te amar apesar de tuas certezas

Juro que quis
abandonar minha religião e fazer da tua palavra meu credo
me render a tuas vontades
perder o medo de te querer

E te amei
apesar de minhas críticas
apesar de tuas críticas
carregada sempre de uma saudade incurável
(porque nunca nos alcançávamos)

Juro que te amei
e consegui te amar
apesar de tudo em você
me negar permanência
me negar certeza
me negar calor

E como nada me concedias
passei a buscar
qualquer coisa
que me consolasse de tanto amor

Te amei
no desconforto do teu me ignorar

Mas fui crescendo tão grande
no avizinhamento de tua ausência,
fui me habituando tanto a ser sem ti do teu lado,
que ser sem ti e sem teu lado me doeu bem menos

Construí tantas pontes dentro de mim
criei um mundo tão meu, para me distrair da tua distância
que sofrer tua distância já era bem menos interessante que passear no meu mundo

De tanto não te esforçares
-me entregava, e não me recebias-,
devolvi-me a mim
(ou tu me devolveras e eu soube me receber)
E de volta a mim,
assim tão plena,
descobri que amei
minha própria generosidade
minha inventividade
meu jogo de arriscar amar

Mas ainda tenho
saudades incuráveis
-a saudade de uma infância,
a saudade do ingênuo,
a saudade daqueles sonhos,
não de ti

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

(pra ser um fado II)

Num quarto de hotel
Numa festa
Na rua
Num bar
Em meio a tanta gente
Ainda esperas por mim?

Tens pressa?
Tens a certeza de que chegarei?
O que intuis na tua espera?
Ainda esperas por mim?

Vais me receber de coração aberto?
Ou só me esperas para devolver ressentimento?
Me esperas com desejo, paz ou desalento?
Ainda por mim esperas?

Se me vires
Reconhecerás em mim aquela da tua espera?
Quem esperas quando esperas?
Ai, se é por mim a tua espera
Eu nada posso prometer

Quanta coisa
Na vida e em nós já mudou

Depois que a gente
No mundo se espalha
A gente não sabe mais se recolher
E a gente fica vagando, peregrinando
Inquieto
Pensando se alguém nos espera
Em qualquer parte
Com qualquer querer
Lembrando de alguém
Que talvez nos espera
Amando ainda uma memória
De alguém que depois de tanto tempo
tanto trem
tanta estrada
e tanto mar
Já é outro alguém

Ai, se é por mim a tua espera
Eu nada posso prometer

Ai, se é por mim a tua espera
Eu nada posso prometer
(pra ser um fado I)


Estás condenado
A não amar ninguém

Estás condenado
À solidão

Estas condenado
Ao amargor
No berço da desilusão

Estás condenado
A não amar ninguém

Estas condenado
À solidão

Estás condenado
Ao desamor
Ao fado da resignação

Se não te encantas como eu
Se não balançam tuas mãos

Se não pereces no viver
Vais perecer neste vagão

A vida exige o mais de si
O amor exige doação

Se nao te entregas como eu
Estás fadado à solidão

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Os rios minguaram, estas semanas
Me lembraram a paz que pode vir da aridez

Joguei fora uns remédios passados da validade
Limpei umas gavetas
Comi banana d'água assada com canela
Fiquei mais na varanda
Senti frio no sereno
Gripei
Dancei forró
Planejei viagens
Paguei contas
Não sobrou dinheiro para viajar
Estirei uns músculos por sobrecarga, na academia
Senti dor, nos tempos de dor
Passou
Muitas coisas se sobrepuseram ao rasgo daqueles dias
A lembrança tua se juntou aos montes de outras lembranças que já não alarmam mais
Cantei Roberta Sá
Fingi que encontrei um novo amor
Não menti para ninguém
Comprei novos batons
Nunca me vi tão forte em mim
Tão certa
Estou indo bem
Não quero nem saber

quarta-feira, 28 de maio de 2014


sem alardes

ages sem alardes

porque não avanças em me possuir
me tens inteira

minha vontade e apenas ela é o laço que me lança a ti

porque sou voluntariamente tua
te cubro de mistério
(é só o que sei dar)

não digo que te compreendo
porque há entre nós uma comunicação imediata
que vai além do compreender ou não compreender
que não tem caminho, percurso, trajeto
que se estabelece instantaneamente
-uma comunicação que de tão extraordinária
é quase o oposto de si


teu mistério
é não ter mistério algum


porque não tens alardes
não estremeço
não temo
nem recuo
me aproximo
quero ver o que existe
além da tua mansidão

segunda-feira, 7 de abril de 2014

eu preciso, em muitos momentos, ser exclusivamente só. é apenas quando sou toda solidão, que sou em absoluto - ora eu, ora o mundo. pois quando estou só, posso me expandir. ocupo toda a casa, todo o lugar, se estou entre paredes. se estou em campo aberto, me oblitero, sou qualquer coisa que não eu. me transmuto em outras matérias. sou assim: mar imenso, formiguinha carregando folha, fumaça de escapamento, barulho de motor, cheiro de grama cortada, terra. uma pessoa só é uma pessoa tão com ela, tão nela centrada, que encontra conforto até numa luz de abajur, num chocolate esquecido na bolsa. uma pessoa só é uma pessoa tão com ela, tão nela centrada, que quando ela perde um amor que tinha, ela lamenta pelo outro, que o outro tenha perdido as possibilidades de descoberta e contato com o mundo e consigo que só a pessoa que é só pode proporcionar ao outro. a pessoa que é só, que é nela centrada, é tão certa de si que de si transborda e quer ondear o outro. quer banhar o outro de si e repuxar o centrado que o outro tem dele. começa como se mistura farinha à massa de pão de ló, mexendo devagar e leve, pra ficar aerado, mas logo quer se fundir como metal, passando a ser um terceiro ser. esse desejo de fusão jamais pode ser realizado, mas a pessoa que é só não se frustra. sabe que o desejo precisa continuar sendo desejo para que não morra. sabe que ser só é a condição primeira para sentir o outro.