quinta-feira, 28 de maio de 2009

Pé-direito alto em descontínuo

Gosto de ler histórias de famílias em decadência econômica e estrutural. Prefiro os decadentes aos emergentes, a quem tudo tem ares de novidade acesa. Sou dada a tradições e costumes bem marcados. Casarões abandonados, envoltos por grandes muros, limo nas paredes, rachaduras, jardins que se tornaram verdadeiros matagais. As mármores podem parecer intactas, mas há algo mais fúnebre e grandioso?

João hoje resolveu sair mais cedo, a manhã mal tinha despontado. Levou consigo um livro pelo qual nunca tinha tido interesse e comia uma maçã. A que horas terei João de volta? João demora? Convem ligar o rádio, bordar, fazer pães? O barulho da panela de pressão às nove da manhã é vulgar. Eu não suporto o cheiro dessas criadas. João deixou o carro, mas não sei dirigir.
Estou presa na ausência de João.

domingo, 3 de maio de 2009

é tudo só. meu amor, é tudo tão só. fico revivendo a solidão compartilhada no teu apartamento, eu revivo os momentos enquanto os momentos acontecem. eu pinto as unhas, você lê o jornal, os vizinhos preparam o almoço. os talheres tintilam, ainda não temos fome. acordamos tarde, a noite de ontem se estendeu além do planejado e teus amigos sempre tardam a ir embora. eu abro e fecho portas e janelas, passeio pelos cômodos, estou muito preocupada em encontrar algum objeto há tempos perdido. ninguém sabe onde está. esta casa não é minha. precisamos comprar um escorredor de pratos, os dias têm sido razoavelmente mais fáceis depois que você consertou a geladeira. não vamos sair ilesos dessa. você assiste à tv, eu dobro as roupas secas. temos muita fome. as palavras tem faltado. esta casa é muito grande pro vazio da gente. ambos esperamos com ansiedade o final do campeonato. eu aprendi a gostar de futebol, você ouve rock. você bebe wisky, eu descasco uma cenoura, eu prefiro cenouras cruas. eu tomo banho, você corta as unhas dos pés. escolhemos as roupas, desistimos de tudo. o tédio é elegante e poético, evitamos os olhares. evitamos as palavras, não temos palavras. mato uma barata na cozinha, eu não preciso de você. você age os papéis do inventário, você não precisa de mim. chegam correspondências de toda a sorte, você faz pagamentos, eu escolho sapatos em liquidação, me apaixono por pessoas no metrô, corro a 150 na br. você devia comprar cortinas novas, você devia me proteger disto. os sol está se quebrando lá fora, há cacos de espelhos na calçada, você não me viu chorar ao som de um novo cantor desconhecido. o sol está partido, escorrendo pelas calçadas, asfaltos, na lataria dos carros, nos sonhos sem dono. Estamos mortos de fome.