segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Mal descortinamos os fatos, me vinha Álvaro com as pernas tortas, como se saído de alto mar. Álvaro havia se tornado um estorvo entre nós. Então, éramos eu Álvaro e tu. Como ignorar a face de medo de Álvaro, eu não sabia. Tu parecias conviver bem com a culpa, me davas a impressão de um homem sem arrependimentos. Quantas noites teríamos de passar até conseguirmos dizer aquilo? Nos distanciávamos daquele entretanto, daquela verdade, daquele susto. Mas esperávamos, noite a noite, que algum de nós dissesse. E enquanto isso, Álvaro não chegava a ser, entende. Nem chegava a ser e trazia algo de ruim, um peso que nós, somente nós dois, não suportaríamos. Éramos frágeis como duas crianças, eu me agarrava a ti, tu dizias só ter a mim. Mas teus braços eram magros e eu tinha olhos fundos de chorar. Parece que eu via Álvaro entrando numa tarde de domingo, parece que eu via Álvaro. Também via a ti e a mim, mas não tão claro e lúcido como me vinha Álvaro. Eu podia reconhecer no teu medo o medo dele, por isso me intimidava tanto pensar em ti e Álvaro no mesmo sonho.

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Álvaro não veio nem virá, nós nem chegamos a acontecer e o peso das coisas recai sobre mim sempre que te encontro ainda turvo sem nome e tento retomar a alegria de um outro verão.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Eu nunca mais fui à praia. O pontal agora estava mais deserto. As casas e as ruas também morrem, talvez essa fossem a mensagem da destruição que obriga ao abandono e deixa um gosto de tristeza nas fotos e na lembrança. Tantos haviam deixado seus verões no fundo daquelas águas intempestivas, que poderiam ser o mar de qualquer litoral, mas era o princípio de minha memória. Dali em diante, as águas daquele mar seriam minha história, as águas sem-fim.

Não tenho nada a ver com Caio e Ana, mas eles me pedem, cada um em seu íntimo, que eu os diga. Não tenho nada a ver com Caio nem Ana, mas já choramos no mesmo vagão. Caio e Ana estavam lá, no cenário da minha memória. Um dia, me visitariam num fim-de-tarde para falarmos dos filhos que não tiveram e do quanto nos custou a vida.

Ana, vestida de festa, não pôde conter a ânsia de ver o mar desabando sobre seus pés. Era como se todas as coisas estivessem à espera daquele momento. Porque Ana se dedicava à admiração das coisas. Embalava-as com seu olhar, tinha um monte delas nos olhos. (Eu pensava que a vida de Ana concentrava-se neles. Certa vez, aproximei-me quase a ponto de tocá-los. Hesitei a tempo de manchar com o toque aquele fundo, o espaço onde Caio e Ana me vinham.) Caio dizia muitas palavras duras, que se petrificavam na sua rouquidão. Caio dizia pedras. Ana se calou. Deixou a fala de Caio suspensa no ar, sem revanche. Aprendera que, para Caio, a decepção era uma forma de conquista. Assim, Ana o mantinha sem contê-lo. Naquele tempo, era mais difícil o querer conjugado à dor. "É estranho que me ames, a despeito de minha aridez." E foram tomados, até mesmo Caio, por um constrangimento passageiro. Logo as coisas retomariam sua velha ordem de ser, presumia Ana, antecipando seu alívio. Ana cada vez revelava-se menos, cobria o colo, não deixava que ele a visse no banho. Ana, subversiva, pensava "É estranho que o ame, a despeito de minha aridez".