quarta-feira, 26 de novembro de 2014

diz-se que ninguém é substituível. diz-se que todos são substituíveis. substitui-se o lugar, o cargo, o título, a função, o espaço, não a presença, o olhar, o intangível. e te conheço tão odiosa e profundamente, a ponto de saber que haverá, sempre, dentro de ti, a marca de minha ausência. digo isso não somente por quem eu sou, mas por quem és. és um tipo mesquinho de homem: o tipo que não se dá. mas quanto a mim ensaiaste, projetaste ser um homem melhor do que és. sem sucesso. te ostentavas firme e inabalável. e eras. porque passaste pela vida anestesiado, em constante negação. não eras forte, eras apenas alheio. eu não. eu me firo com o mundo, eu me desmancho, eu me refaço, eu incalculáveis vezes renasci. e tu te atraías, mesmo sem se dar conta, por essa verdadeira força: a força que é não ser imune, mas resistir. tu te atraías pelo desafio das nossas diferenças. ou melhor: a princípio, tu não vias desafio em mim. apenas distração. só muito depois é que viste desafio, quando, para mim, tu já eras somente distração.

depois de me perder
eis tua autocondenação:

nunca
nada nem ninguém no mundo
além de mim
terá minha pulsação

sábado, 22 de novembro de 2014

a memória
às vezes
é uma praia esquecida
com um farol
que vira e mexe vira e ilumina
um mar de escuridão

quanto mais necessário o farol
(nas noites sem lua)
mais perigosa sua luz

quanto mais negra a memória
quanto mais abandonada
mais susto se leva
à descoberta da luz
como se nus
fôssemos pegos em flagrante
e tudo o que é
proibido
acobertado
e degradante
fosse
de repente
inevitável
você se intriga
eu não me entrego
a gente briga
você bolero
eu canto a pedra
você na trave
eu toda prosa

você mais tarde
a gente brinca
você não nota
eu falo sério
você marmota
eu tanta coisa
você em outra

você procura
a gente some
eu desconverso
você assume
a gente sabe
mas eu não digo

a gente junto
você enrola
eu quebro o gelo
você demora
a gente suspende
e vai embora

você volta
eu não vejo a hora
a gente se entende
você se apavora
a gente mente
você desaprova

eu
presente
você
escape
eu
transparente
você
disfarce

eu
volúvel
você
indissolúvel
eu
fluidez
você
solitude

a gente
desencontra
a gente
busca
a gente
contorna
r-e-v-i-r-a-v-o-l-t-a
minha devoção
te aborrecia

e agora
meu desprendimento
te irrita

tens que decidir qual insatisfação preferes
não se pode ter tudo na vida

Diário do irrelevante

Meu armário de despensa foi tomado por traças e passei dois dias em função de sua limpeza e descarte de alimentos. Como dizer a Demétrio que esse é o tipo de coisa que ocupa minha vida? O que prende Demétrio?
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Fui ao supermercado e ao açougue. Cozinhei por horas. Demétrio nunca provará o sabor da minha comida. Demétrio aprecia condimentos?
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Inventariei a casa e listei os utensílios faltantes: cortadores de legumes, uma nova tábua para carnes, novas facas, nova peneira, fio de extensão. Fui ao bazar. Comprei-os. Limpei os interruptores, o telefone, o liquidificador e a sanduicheira. Estão como novos. Saberia Demétrio admirar meu capricho? Ou para ele esses cuidados seriam irrelevantes?
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Organizei uns papéis, listei meus afazeres, liguei para Cláudia, Francesca e Antônia. Com Antônia, gastei três horas. Comentamos as notícias, falamos sobre a doença de seu pai e sobre como as relações têm se depreciado. Demétrio daria conta de uma longa e profunda conversa? Demétrio fugiria de quais temas?
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Fui ao cartório. Quero deixar tudo pronto para quando eu morrer. A vida das pessoas se trava muito por causa de burocracias. Eu que trabalhei décadas com inventários bem sei. Vou deixar tudo organizado. Não quero que meu nome e minha morte se arrastem em prateleiras empoeiradas ou em nuvens eletrônicas criptografadas e diários e notificações oficiais. Quando eu morrer, quero que meu nome vá comigo. E que fique só, em meu lugar, um pousar de passarinho. Qual seria o apego de Demétrio pelo próprio nome, pelos próprios bens? Que legado Demétrio deixará?
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Categorizei minhas fotografias. As digitais e as físicas. Surpreendi-me com meu olhar. Não por tê-lo perdido ou me distanciado, mas por ter me reconhecido ainda mais naquelas fotografias - minhas pequenas traduções do mundo. Cada clique é um abraço. O que prende o olhar de Demétrio? Demétrio vê beleza no que eu vejo?
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Ouvi música triste e chorei. O que atinge Demétrio?
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Adiei o dia todo uma ida à cidade vizinha. O dia estava muito quente. Tomei três picolés e dormi. Demétrio tem preguiça?
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Comprei bilhetes para uma viagem. Duas horas depois, cancelei. O entusiasmo não durou. Ou deixei de ir para que o entusiasmo não desvanecesse. Havia alguém que me esperava, naquele destino. Desapontei-o. Demétrio sente culpa com frequência? Demétrio desiste das coisas?