sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pé-direito alto em descontínuo IV

Ontem Madalena veio nos visitar. Como sempre, sem aviso. E sem conserto. Tinha engordado muito. A pele do rosto oleosa. O decote exagerado, as roupas muito estampadas e uma cavalaria de colares e pulseiras barulhentas que só faziam anunciar que era uma mulher triste. Madalena & seus badulaques. Os filhos se mudaram, pouco a procuram. O ex-marido parece realizado no novo casamento. Madalena pesa na maquiagem, na cor do esmalte. Não se dá conta do quão catastrófica e caótica é sua imagem. E sorri, e gargalha, gargalha alto, porque nunca teve medida nem limite para nada. É deplorável a gargalhada de Madalena, mas não me provoca compaixão.
Madalena fez suas escolhas, eu fiz as minhas, não há o que lamentar a essa altura da vida. Apesar do desaviso de sua visita, havia laranja-da-terra em compota e a hospitalidade de João. Madalena gesticula, e fala alto, se sacode na poltrona, se intromete na decoração da casa, na minha rotina, faz comentários sobre os parentes distantes. Eu não quero saber o destino deles nem de ninguém, Madalena. Madalena conta das viagens que tem feito, fala sobre as promoções das linhas aéreas, sobre o parcelamento do cartão de crédito, das pechinchas que encontra. Não vê que quanto mais fala, mais sozinha está. João faz as vezes da casa, a leva até o jardim, conta das plantas que plantamos, do projeto da reforma.
Madalena diz que pareço abatida, que preciso de cor. Não tem freio na língua. Ora, apenas o fato de sermos irmãs não lhe dá o direito de vir a minha casa, inventariar meus bens, avaliar-me a saúde, a tez. Papai não logrou em colocar Madalena nos eixos, a permissividade que mamãe guardava à filha mais nova a estragou. Eu, por exemplo, não perguntei a Madalena se suas sobrancelhas permanentes eram para ter ficado pretas, no lugar de verdes.
E volta Madalena a falar dos meus cabelos, do corte, dos novos tratamentos. Céus, como me cansam as visitas, as interferências! Não bastasse ter-me interrompido a rotina, Madalena se demora. Espalha o perfume forte pela casa, gesticula, fala alto, estremece a minha paz. Ainda agora, exala o cheiro deixado por Madalena no sofá da sala. E as empregadas a buscarem traços em comum, comparações entre mim e a outra, pensam que não percebo. Como Dona Madalena é para cima, animada! - Nada sabem, essas criadas, são todas umas cabeças-de-vento.
Não há nada daquela estranha em mim.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Pé-direito alto em descontínuo III

Tenho ares de mulher devastada pelos anos. Aparento ter vinte eras a mais que o tempo de fato vivido. As pessoas não me dizem, mas sou perita na arte do não-dito. Eu mesma não aprovo o modo de vida dos outros, mas não os faço viver sob o julgo de minha reprovação.

Não me fazem falta, as amizades. Tenho a casa, tenho a João, o casamento. Se me falta vaidade para o corpo, sobra-me a dedicação e o gosto em cuidar do que me pertence de direito. Talvez João não saiba dizer o que as paredes e os cômodos da casa testemunham. Vivo o casamento, João, a casa. Não sou resignada, sou feliz. Penso que João não acredita em minha felicidade, já não faço mais esforços para convencê-lo.

Pouco conheço de João, é bem verdade, no entanto sei de todos seus hábitos e preferências. Horários bem marcados, sobriedade, disciplina. Admito que pouco conheço de João - um grande mistério sem mistério algum, porque não quero desvendá-lo. Tenho uma certeza morna de que João também ama a mim, ou pelo menos acostumou-se e me aceita, o que não é muito diferente de amar. É um homem bonito, como dizem, "bem conservado". Eu e o tempo cuidamos bem de João. Às vezes me pego a pensar quem de nós partirá primeiro. Pelo andar das coisas, imagino (e desejo) que seja eu. Vejo João só, nesta casa. João ficaria ainda mais charmoso e atraente viúvo. A solidão presumida lhe cairia bem, apesar de João não ser dado a sofrimentos e lamentações.
Quanto a mim, só posso dizer que sou uma mulher realizada. Tenho a João, ele tem a mim, nos bastamos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Pé-direito alto em descontínuo II

Eu não consigo ir à rua sem ter pressa. Eu preciso estar atrasada para deixar a casa, é preciso que seja urgente e inadiável minha saída, eu preciso sempre voltar depressa à casa. João nunca se contenta com o que escolho para a dispensa. Falta azeite e picles. Eu preciso ir à rua, preciso pegar a correspondência que nos deixam nos correios. Esta casa fica longe de tudo. Bons foram os tempos antes da granja falida. João não convida mais os amigos para jantar. Faz anos que não pinto as unhas. Meus cabelos têm ficado mais ralos e o olhar mais frágil. João faz que não vê muitas coisas. O que seriam dessas criadas sem as minhas orientações. O gigantismo das portas e janelas é oponente e opressor, mas não temo imensidões e abandonos como estes. João joga cartas, só. Não sei de onde João tirou esse tom de gravidade na fala e no olhar. Ontem, me deu a mão enquanto saíamos da missa. Tive muito medo de sorrir, tive medo de que João notasse minha felicidade quase incontida. Eu amaria João mesmo que João fosse um homem sem sucessos. Caminhamos até o carro, estava frio. Voltamos à casa, as luzes dos postes estavam mais trêmulas. É bom que moremos distantes de tudo. É bom que haja uma ponte entre a aqui e a cidade.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Pé-direito alto em descontínuo

Gosto de ler histórias de famílias em decadência econômica e estrutural. Prefiro os decadentes aos emergentes, a quem tudo tem ares de novidade acesa. Sou dada a tradições e costumes bem marcados. Casarões abandonados, envoltos por grandes muros, limo nas paredes, rachaduras, jardins que se tornaram verdadeiros matagais. As mármores podem parecer intactas, mas há algo mais fúnebre e grandioso?

João hoje resolveu sair mais cedo, a manhã mal tinha despontado. Levou consigo um livro pelo qual nunca tinha tido interesse e comia uma maçã. A que horas terei João de volta? João demora? Convem ligar o rádio, bordar, fazer pães? O barulho da panela de pressão às nove da manhã é vulgar. Eu não suporto o cheiro dessas criadas. João deixou o carro, mas não sei dirigir.
Estou presa na ausência de João.

domingo, 3 de maio de 2009

é tudo só. meu amor, é tudo tão só. fico revivendo a solidão compartilhada no teu apartamento, eu revivo os momentos enquanto os momentos acontecem. eu pinto as unhas, você lê o jornal, os vizinhos preparam o almoço. os talheres tintilam, ainda não temos fome. acordamos tarde, a noite de ontem se estendeu além do planejado e teus amigos sempre tardam a ir embora. eu abro e fecho portas e janelas, passeio pelos cômodos, estou muito preocupada em encontrar algum objeto há tempos perdido. ninguém sabe onde está. esta casa não é minha. precisamos comprar um escorredor de pratos, os dias têm sido razoavelmente mais fáceis depois que você consertou a geladeira. não vamos sair ilesos dessa. você assiste à tv, eu dobro as roupas secas. temos muita fome. as palavras tem faltado. esta casa é muito grande pro vazio da gente. ambos esperamos com ansiedade o final do campeonato. eu aprendi a gostar de futebol, você ouve rock. você bebe wisky, eu descasco uma cenoura, eu prefiro cenouras cruas. eu tomo banho, você corta as unhas dos pés. escolhemos as roupas, desistimos de tudo. o tédio é elegante e poético, evitamos os olhares. evitamos as palavras, não temos palavras. mato uma barata na cozinha, eu não preciso de você. você age os papéis do inventário, você não precisa de mim. chegam correspondências de toda a sorte, você faz pagamentos, eu escolho sapatos em liquidação, me apaixono por pessoas no metrô, corro a 150 na br. você devia comprar cortinas novas, você devia me proteger disto. os sol está se quebrando lá fora, há cacos de espelhos na calçada, você não me viu chorar ao som de um novo cantor desconhecido. o sol está partido, escorrendo pelas calçadas, asfaltos, na lataria dos carros, nos sonhos sem dono. Estamos mortos de fome.

domingo, 26 de abril de 2009

um dia você vai conhecer uma mulher e vai dizer a ela morrendo de medo do silêncio que se prosseguirá "vem morar comigo" ela não vai dizer nada porque não espera nada de você e porque não sabe ao certo a medida das coisas e você vai dizer isso a ela morrendo de medo de ser precipitado morrendo de medo do que mais possa parecer e vai achar bonito que ela encha a casa de flores e de alegria e a cada manhã você dirá um Aleluia por ter essa mulher ao seu lado por assistir ao seu sono por sentir o cheiro da pele dela por roçar na pele dela por querer morrer só de saber que ela existe e que ela é maior que o seu medo que ela é linda que ela lhe tem amor e você não se pergunta se ela tem medo ou não porque de repente você se vê tão corajoso e tão forte e então você passa a achar que podem sobreviver a tudo juntos que podem crescer e mudar de casa e trocar de carro e a cada noite ela dirá que está com sono que o dia foi cansativo e você dirá Amém e pensará nela com a fé de uma prece e você vai vê-la adoecida com o rosto pálido e vai ter um medo danado da morte um medo danado do abandono e você vai pensar que o sentido das coisas mora nela e vai querer tê-la cada vez mais perto e vai se arrepender de todas as vezes que não soube dizer o quanto admirava seu rosto entristecido ao fim de cada dia e ela vai morrendo morrendo devagar e você também vai morrendo morrendo dentro dela fora de si dentro de si rodeado dela alagado dela e os dois por fim morrerão um dentro do outro lenta e dolorosamente as vidas vão dar uma tão pra dentro da outra

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

I
demorei a traçar estas linhas, e acredito sejam dois os motivos que me levaram a esta recusa: o medo de que os momentos que aqui procuro relatar tivessem sido contaminados pela mácula da culpa e o medo de que me leias e vejas a verdade do que digo. começo por dizer que a pele é a fronteira do desejo, mas a pele não nos leva a lugar nenhum, pois como toda fronteira é passiva, sujeita a, e não por si só, ainda que eu tenha levado uma vida inteira na tentativa de justificar meus piores atos na vontade dela. neste caso, não foi a pele o que me permitiu, ou de onde nasceu, a vontade que eu criei e plantei em você. e vem daí o surgimento primeiro desta culpa. fui eu a responsável pelo teu desejo, pelo meu desejo que cria o desejo alheio de si: o teu. isso me remete às longas conversas recentes com amigos sobre teologia e religião. me sinto mais eva do que mulher. penso nos livros que estudam a genealogia da moral, nos filósofos que tu não conheces nem chegarás a conhecer, a não ser por mim. penso que moral & culpa nasceram e permanecem juntas, mesmo a moral laica, se é que hoje conseguimos alcançá-la, ou secularizá-la. mas em busca de ser maior, resolvi abandonar tanto pensamento, que o pensamento às vezes chega a congelar as mãos, as pernas, o corpo. resolvi deixar de pensar se o que vivemos, eu tu eu os outros, são erros ou acertos, procuro encarar o que decorre de minhas escolhas como acontecimentos. meros acontecimentos, fatalidades, surpresas encantadoras, passos a frente, histórias para se contar. e, neste sentido, não foi o apelo do seu corpo (veja que procuro reconstituir esse calvário-sem-dor) o que me alvoroçou a pele, mas o homem que vi em ti, se assim posso definir a forma do meu desejo, tuas virtudes tão claras e ao mesmo tempo tão leves. não te pesa nunca ser um homem assim? trazer nos ombros tanta coerência e responsabilidade não te cansam? confesso, aqui, ser também um desejo meu a tua fraqueza, como, acredito, é parte de todo o desejo eros - desejar o outro pela sua força, mas desejar sua fraqueza, pois que em sua fraqueza é o lugar onde posso me alojar, criar a força que nem o outro nem eu temos. eu acredito que amar é inventar essa força, e ser forte e generoso a ponto de não desejar mais a fraqueza do outro e não deixar de desejá-lo, superando assim a destrutividade do desejo.