sexta-feira, 20 de julho de 2007

Do íntimo do verbo, Ana extraía provimentos para manter-se humana. Destinada a construir-se enquanto mulher, dissera a Caio que era preciso distanciar-se de sua tutela arrefecedora. Inventara que o clamor dos novos tempos lhe convocara aos retornos mais primitivos. Nunca sucedera em argumentos e não era de se espantar o porquê. Agora averiguava se havia deixado algo no apartamento de Caio, que só fazia repetir "Há coisas que permanecem para além". Ana, como de costume, ignorava os murmúrios do parceiro, em parte porque se esforçava para prevenir-se das provocações, em parte por não entender os significados ocultos nas falas de Caio sempre a dizer coisas sem sentido, repleto de propriedade e certeza, como se dono de uma sabedoria frágil revestida de pretensão. Caio, em segredo, pedia que Ana deixasse algo escondido no fundo de uma gaveta, algo cujo esquecimento fizesse ainda mais valioso, porque via nas sobras de Ana sua extensão. Mas Caio, na cegueira de quem muito vê, não se apercebia do cuidado que Ana conservava todas as noites, ao tempo de seu sono: vasculhava a casa de Caio a recolher seus pertences e agrupá-los todos no menor espaço possível. De todo o compartimento do armário, uma prateleira e uma gaveta. Caio via nesse gesto mais timidez que ingratidão. E Caio em sua cegueira não via Ana revestida de um embaçamento próprio, um desfoque de luz. Ana repetia para si, ou para quem quer que fosse, que era preciso, sim, era preciso minguar-se do caldo espesso que era Caio. E determinada afastou as mãos de seu peito, deslizando-as no ar, simulando uma última carícia. Caio, descabido, fazia que não via sua partida. Ana, desfeita, fazia que não se partia ao se ver.

terça-feira, 17 de julho de 2007

evocou a memória das horas para afastar-se a tempo do esquecimento (o esquecimento é um sítio onde já não se contam as horas, o que é algo próximo à morte delas). definitivamente, Mariana não queria despir-se daquela dor. a dor que era a herança de Marcelo vivo. Mariana insistia para si que aquele não era um vestígio despropositado de sua existência, mas uma sobrevida ao que outrora fora - um prolongamento de seu corpo em abstracto. Marcelo agora tomava novas dimensões, distintas daquelas que o pensamento de Mariana concebia. Marcelo deixara de ser homem para ser dor, a dor que Mariana mantinha viva a duras penas. a dor que a dor de Mariana não deixava morrer.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Eram necessários outros parâmetros para avaliar o decorrer de Caio e Ana. Ela retida no movimento que ele fazia com os ombros enquanto lhe negava o colo. Eram outras as razões que moviam Caio e Ana no decorrer das histórias. Ela privou-lhe do beijo de sangue. "Não te detenhas em mim" , não por tanto tempo, dizia Caio, querendo dizer não se sabia o quê. "Caio, faz calar o mundo lá fora para continuarmos sendo a nós." Fechava a janela para enganar-se do frio. Tomava-lhe a cabeça no peito. Procurava quase não se mover para que Caio permanecesse o tanto possível. Às vezes, era desconfortável abrigar o corpo de Caio inquilino, desalojado. Vezenquando, era tão incerto o corpo de Caio, posto que Ana não tinha medida do quanto ele lhe atingia.
Havia sido uma noite clara. E havia sido o fim.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Eu não saberia explicar as razões que levaram Ana até o apartamento de Caio naquela tarde quente de abril. O fato é que deixara sua casa e a extensão de seu isolamento à procura de Caio que nem mais sofria as dores da rejeição. Saiu às pressas como se atrasada para um encontro marcado. A tevê ligada, a janela aberta, o quarto com um ar de abandono súbito. "Eu vim", disse Ana como se atendesse ao apelo de Caio que nem mais dizia seu nome. A voz aflita de criança que se perde de pai e mãe. Caio em seu calor de estátua acolheu-a como a um estranho, ainda que sem cerimônias ou desconfianças. Agregara em seu íntimo o que de íntimo havia nas horas ao lado de Ana, nos minutos dentro dela. Ana chegara mas não estava de volta e trazia no desapego de suas mãos o calor transportado do que antecedera a ruptura. Havia dois outonos em que Ana não havia. Entre eles, um sono de dragão. Caio não admitiria, mas sem Ana, nada entre os outonos poderia haver. E assim foi. Até que Ana, a mulher que mais parecia um sepúlcro de dúvidas e um tronco de certezas mútuas; Ana fraca e despedaçada, à porta de Caio que não mais se aflingia dos finais. Porque àquele instante "Não percebes o quanto não nos somos mais? Eu volto sozinha", laço a laço, capilares, um a um, se partiam. Uma rede desordenada de pequenas dependências desmoronava leve e frágil sob seus olhos. Concluíra, então, que Ana era irresponsável para o envolvimento e a maturidade a dois, que ele, o menino Caio sem Ana saberia seguir sem remorsos ou planos de vingança. Um abismo moroso entre sua ida e seu revés. Ana agora rendida à sua porta. "Tudo bem", diria Caio.
Não disse. Tampouco lhe perguntou, nada a respeito da doença da mãe, da venda do sítio em Minas, da tese de doutoramento. O avesso: deixou que se instalasse e permanecesse um silêncio que caía como se borrifado no ar, atingindo a pele, conferindo-lhe um breve repouso e dissipando-se por toda a sala - inspiração e expiração de Caio e Ana, tão somente um par sem ser. Os ponteiros do relógio cruzavam-se às cinco horas quando Caio em Ana. Os dois a tecerem a tarde sem sonhos daquela tarde. Ignoravam sem saber os precipícios que seriam as noites subseqüentes, em parte porque sabiam-se desprendidos de si, em parte porque queriam-se acoplados sem se pertencerem. Depois disso, o beijo, o derradeiro; Caio apoiado na parede, vão da porta, braço direito alongado em direção ao teto, o esquerdo na maçaneta. Ana de costas, se afastando no corredor, cabisbaixa porém refeita. O que ficou: a tarde descolada do tempo, um segredo denso e vivo em duas metades, um segredo que lhes valeria o amor.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Tentei sorver a respiração da sala, dos livros empilhados, da escrivaninha comprada no antiquário da Lavradio. Tu te distraías com nomes de ruas, inventavas epopéias de generais. No fundo sabias, mais certo que eu, sobre o que há de vão nas histórias, na vida. No fundo, tu guardavas o fundo das coisas para trazê-las até mim. E dizias 'o fundo das coisas é a essência delas'. Eu pensava que essência já não era coisa, porém amava tuas coisas todas que deixavam de ser. Porque eu sabia que o fundo era vão. Que não haveria ninguém, nem tu, para amparar-me do dispêndio das horas, das sobras de vida, do desmazelo. Tu jamais entenderias que eu moro nas palavras e que somente através delas é que te amo, amando-as mais do que a ti por me permitirem amar.
Enganávamos um ao outro dizendo que o amor mora nos corpos, instalado na carne e que, por isso, um dia viria a apodrecer. Ninguém entenderia a compreensão a que chegamos, de fazer do amor matéria onde se daria a condição da vida. Ninguém nem mesmo saberia.
Tu, então, trarias novos limites ao entendimento. Tu despirias o porquê das coisas para que elas fossem em sua plenitude. "As coisas não tem paz", tu te repetias para dizer a mim. Eu te amava tanto nesses momentos, que tinha medo de que tanto amor gastasse a vida. Eu erodia o tempo nestas horas íntimas. Eu te fazia outro para amar-te em outras formas, mas no fundo de ti, que era sempre o mesmo, eu sempre encontraria o tato da verdade indizível das coisas, de nós, do próprio fundo. Alcançaríamos juntos tais limites?, ou somente tu é que os reestabeleceria, trazendo-os posteriormente a mim?
Eu sei que temes a putrefação do amor. E este é o nosso maior segredo, o segredo que guardamos sós, no cerne da solidão de nos sabermos. Eu no fundo de ti, tu no fundo de mim, tudo vão.