sábado, 26 de dezembro de 2015

são três mo(vi)mentos:

i. (tentar) dar ordem ao caos;

ii. aceitar o caos como a ordem;

iii. fazer do veneno vacina.

sábado, 21 de novembro de 2015

de manhã, 
tomei leite com nescafé
nescafé, para mim, só fica bom com leite
e pouco açúcar
e canela, mas canela nem sempre 
e bastante açúcar, às vezes

de sobremesa, 
tomei sorvete de açaí

no fim da tarde, 
eu caminhava pelas ruas do bairro
tão feliz tão feliz que é horário de verão

já de noite,
tomei umas brahmas na varanda da vizinha
entre roupas estendidas, um tanque, e azulejos descombinando
tivemos uma boa conversa

agora mais tarde,
comi dois ovinhos moles
e de sobremesa
cerejas em calda
mais até do que devia

no banho,
usei o sabonete johnson novo
comprei quatro deles, cada um com um aroma

e depois, tomei o tal colágeno hidrolisado 
para dar fim à condromalácia

estou desconfiada quanto à eficácia do tal suplemento
mas mentalizo assim "joelhinho, fica bom"

o prazer que eu tenho na irrelevância



quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Anteontem tinha roda de capoeira, na rodoviária. Estava bonito, cada um parecia uma mola; é preciso ser muito forte para envergar e não se quebrar nem desequilibrar. A força nem sempre é dura. Entre a rodoviária e minha casa, tem uma ponte. Debaixo da ponte corre um rio. E é bonito enquanto eu passo sete passos olhando o rio. Minha pressa é menor, por sete passos. O rio está baixo, mas eu não lamento o rio baixo, como fazem as outras pessoas. Eu aprecio as pedras, que só aparecem porque o rio está baixo. Hoje de manhã, a gata da vizinha apareceu aqui. É uma gata marrom, muito peluda e muito séria, mas que não rejeita carinho. Sentei-me ao chão, na varanda, para mimar a gata. Não por ela, por mim. A vizinha apareceu, encontrou a gata, não se aproximou, apenas olhou e sorriu, solidária e um pouco surpresa. Agora à noite, voltando do restaurante, parei uns instantes para alisar a testinha de um cão vira-lata preto bem pretinho, que vive triste na escada da vila. Vive ensimesmado, quase não se mexe. Ainda não tive coragem de perguntar se ele tem dono ou ao menos alguém que cuide, porque tenho forte tendência a abarcar responsabilidade, e responsabilidade traz preocupação. Omitir-se pode não ser correto, mas às vezes encontramos mais tranquilidade na omissão; é só listar justificativas para sanar a culpa e uma culpa pequena vai sendo absorvida pelos dias, e compensada pelo sofrimento das pequenas injustiças a que somos acometidos. No fim, tudo é uma questão de discurso. Incrível como essa cidade tão cedo se tornou familiar. Tudo bem, até hoje não consegui descobrir a lógica das linhas de vans e kombis, mas saindo do ponto final, e virando referência na localidade, logo algum motorista me grita apressado Fórum-Fórum! Eu tenho esse talento: o de transformar lugares e pessoas rapidamente em coisas familiares. O cão não festejou meu afago, e de repente eu me vi no cão. Tão só, tão só, tão sedimentado na solidão, que nem uma possibilidade de companhia lhe entusiasma. A solidão de quem conhece o desengano, o cansaço do mundo nos olhos, enfiado no poço da descrença. Ainda assim, eu resisto, eu nutro uma fé na comunhão. Apesar de eu ser muito só (ou mesmo por isso, talvez, quem sabe), qualquer lugar é casa, qualquer pessoa é irmã. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

não importa o que eu procure
eu só encontro
sarna para me coçar

domingo, 8 de novembro de 2015

a paz
não raro
é um cômodo da casa
aonde não consigo chegar

sábado, 7 de novembro de 2015

não tenho do que me queixar, solidão
já fui muito só
as vezes em que fui mais só, havia um homem ao meu lado
e agora sem ninguém ao lado ainda sou só
mas sabe o quê
para quem aprende a ser só
a solidão
é de um empoderamento enorme

domingo, 1 de novembro de 2015

se você estivesse aqui
eu teria ido dormir mais cedo,
veria mais sentido nas manhãs.

faz falta
o sossego fingido que você me dava.

e ainda que durante o dia
eu veja mil vantagens em não te ter mais,

até nas noites mais quentes
eu preciso de você ao meu lado
por motivos de: relógio biológico; termorregulação.

sábado, 31 de outubro de 2015

às vezes, a gente pensa que está
prestes a chegar a um ninho seguro
e vem um mar em ressaca
e nos afasta da felicidade
nosso desejo é destroçado
e a paz é algo que só existe na distância

a vida vai
assozinhando a gente

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Certa feita, Daniel me disse que eu sempre dava a impressão de que não dizia tudo o que pensava. Passei a dizer mais coisas e Daniel me disse que eu era perigosa porque era honesta (como na música do U2). E agora, quando digo o que merece ser dito, as palavras viram cães ferozes e cavalos selvagens, sem quem possa domá-los. Parece violência mas é só verdade.
Augusto veio a minha porta
Aflito, disse que me amava
Me pediu em casamento
E disse algumas outras palavras,
bem decidido

Olhei bastante e muito atenta
Me demorei muito naqueles minutos
Silenciosa
Sem reação

Não reconheci em Augusto
o homem que amei

Eu letárgica
nada sentia
nem mesmo curiosidade
de saber o que havia lhe acontecido
ao longo de todo esse tempo
em que eu nada soube

É triste pensar
que um grande amor
mais ali na frente
logo depois
pode parecer
algo  c o m p l e t a m e n t e  dispensável

domingo, 13 de setembro de 2015


Sina é o destino que nos sobra,
quando nenhum dos que a gente escolheu
deu onde a gente queria.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

um dia acompanhei papai ao rio
fomos ao detran
papai atravessou a rua fora do sinal
e me deixou para trás
presidente vargas
eu criança fora da faixa
papai do outro lado
duas pistas entre nós
presidente vargas
e papai sem nem se dar conta

desde então
tem sido meu fado
correr perigos
acompanhar homens
que só sabem andar sozinhos

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Pé-direito alto em descontínuo VIII

Voltávamos da cidade quando João disse que passaríamos para ver Madalena. Eu disse que não tinha paciência para Madalena, e João rebateu que Madalena era minha única irmã, e que em respeito à memória de meus pais deveríamos, ao menos de tempos em tempos, procurá-la. Eu disse que não era certo visitar os outros sem aviso, ainda mais na hora do almoço. Mas João sabia que Madalena não era de protocolos e não se incomodaria com nossa chegada inesperada. Ao contrário, Madalena se alegraria.

João inventa de ter paciência para pessoas com quem não tenho paciência. É uma forma de remendar minha frieza e minhas ausências. João é conciliador, compensa meus vícios com seus cuidados. Os outros reparam. Não me importo e faço até gosto. Que os outros vejam como eu e João nos compomos. Há entre certos casais combinações mudas que tramam e sustentam uma relação. Muitas coisas miúdas e mudas laçam nossos anos de união.

Bati o pé. Difamei Madalena. Esperneei, mesmo sabendo que seria inútil, porque João faz coisas contra minha vontade. Lá chegamos. À casa de Madalena, o muquifo em que ela transformou a herança que lhe coube de nossos pais. Tudo fora do lugar, Madalena é mesmo dada à desordem. João muito simpático, eu resistente. Eu sempre resistente a algo, a todo o momento. Não há um momento, meu Deus, na vida, em que eu não esteja resistindo a algo. Eu resistindo ao nojo que a casa me provocava. Madalena parecia não ver. Madalena era uma cega eufórica. Só bradava 'Que bom que vocês vieram, vocês nunca vêm, Olha, olha a tv que eu comprei, Olha, olha o computador novo, olha, Vocês não fazem ideia do que é essa tv, Bebeto está me ensinando a usar o Facebook no computador novo, postamos fotos do passeio de domingo, Olha como eu tô moderna, olha'.

Bebeto é o novo caso de Madalena. Um menino que ela colocou para dentro de casa. Mas gente, esse menino não tem família? Fiz que fiz vista grossa para aquele desaforo todo. Agora você vê, Madalena com um rapazinho recém saído da puberdade. Esse menino completou o científico, pelo menos? A tonta não vê que o que ele tem de músculos tem de aproveitador. Sem camisa, almoçando no sofá da sala, copo de refrigerante no chão. Prato Duralex, talheres com cabo de plástico. Mas onde foi que Madalena aprendeu ou aprendeu a admitir esses modos suburbanos?! Às vezes, eu penso que ainda bem que papai e mamãe já se foram para não testemunharem tamanha pouca vergonha. O gigolô é mais novo que Toninho. Madalena não enxerga que está velha e criando filho dos outros. 'Ah, fica, vai, vocês quase não vêm, Aproveitem, tem almoço, Hoje é dia da empregada, ela faz comida a mais, para congelar'.

'João, me tira agora daqui'. E João sorrindo, quase debochando 'A gente adora carne seca'.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Às vezes, me lembro da casa de G. Dos móveis despencando, do sofá-cama duro, do cheiro de cigarro, da janela que dava para um morro e um mato, para um oposto de cidade. Às vezes, me lembro da casa de D. Do cheiro do armário, da janela bem grande que ele quase nunca abria, dos móveis que trouxera da casa dos pais, de abraçar a mim mesma forte por dentro para não despedaçar quando encontrava um brinco, um batom ou uma jaqueta de outra mulher. Às vezes, me lembro da casa de B., do cheiro de material de construção, da cafeteira, da sanduicheira, do fogão, da máquina de lavar, do espelho do lado de fora do armário, de achar que estávamos estreando uma nova casa e uma nova vida. 

Trago todas as casas em mim, e não tenho onde morar. Aonde vou, não demoro. Logo parto, logo desgarro. Lanço-me ao mundo, resiliente e indefinida, sem audácia ou ousadia, e ainda que o mundo seja apenas um município do interior. Assumo que o faço por ponderada valentia, mas temo ser sina. Aprendi a partir, aprendi a deixar casas, cheiros, armários, sonhos e rotinas. Não tenho onde morar, então caminho. Vou me acostumando a nunca mais querer ou precisar de uma casa para morar. Nada possuo, nem as casas que carrego comigo. Não há o que me represe. Periga eu esquecer como se fica, como se habita e como se cuida. E de tanto partir, não ter mais volta. Por sina, ou valentia.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

diálogos inescrupulosos II

-eu ainda penso em você.
-eu ainda te acho um idiota.
um dia pensei
que sabia amar
quem possuía vocação para a espera

alguns homens tiveram
minhas tantas horas
de preparo e zelo

os homens se foram
restou o tempo

é noite
ninguém virá

não há desespero

na espera
eu aconteço

sábado, 5 de setembro de 2015

Ana
um dia
sonhou em ter um namorado
que lhe presenteasse com um par de patins
e a levasse para tomar sorvete na praça

Ana
nunca soube
no entanto sempre desconfiou
que o verdadeiro amor
era adolescente

Mas Ana cedo amadureceu
caíram em desuso os amores não consumados
e os homens a quem se entregou
foram todos
diferentes versões
de um mesmo
e imenso desastre

Ana não tem nojo dos casais que fazem
carícias escandalosas nas ruas à luz do dia
nem julga as meninas que sonham em se casar com seus namorados

porque Ana
que aprendera a viver sobre os escombros dos amores desmoronados
depois de tantos finais
não zomba do que aos outros parece ridículo
não apedreja o que aos outros é imoral

porque se ainda há ilusão, no mundo
se ainda há lascívia nas calçadas sob o sol do meio-dia
ainda a vida pulsa

e mesmo que os amores sejam sucessivos e incansáveis desastres,
apesar do desastre e maior que ele
há vida

os desastres são a ressaca dos sonhos
-o lamento pujante, inconformado, da perda

vencer o desastre requer vivê-lo

mas logo isso não é novo
e logo se aprende:
viver é algo
que se faz com insistência

quarta-feira, 3 de junho de 2015


os arredores da casa cheiram a xixi de gato
falo alto reclamando
do cheiro do xixi de gato
finjo estar contrariada
mas o fato é que
cheiro de xixi de gato
me traz um conforto enorme
tenho estado avessa
às coisas feitas para durar
às construções que vencem o tempo
a passados sólidos

tenho tido muito apreço
pelas coisas sem história alguma
- se é possível não ter história

tenho tido desejos
de renovação

domingo, 19 de abril de 2015

a história das minhas paixões: construir uma embarcação, domar o mar, sozinha, em uma noite sem lua, vencendo as tempestades, chegar, exausta, aos pés de quem amo, e tímida e mansa não saber pedir o abraço que mereço receber.



"Sonhei que construía um barco
Sonhei que sabia o que fazia
e com este me lançava ao mar
uma noite sem lua
em que não se distinguia
água de céu
da negrura de um horizonte
que fundia terra com mar

a estrela e o timão
Vento, conduza minha intuição
não há outra guia além desta
sensação de imensa liberdade

Córsega
Córsega
Córsega

no sonho te buscava
e no mesmo te encontrava
por mais incrível que fosse
meu barco chegava a teus pés

tantas noites de alto-mar
cavalgando tempestades
finalmente estou pronta para fincar
a âncora da vitória

a estrela e o timão
Vento, conduza minha intuição
não há outra guia além desta
sensação de imensa liberdade

Córsega
Córsega
Córsega
Córsega

no sonho te buscava
e no mesmo te encontrava
por mais incrível que pudesse ser
depois de ter domado o mar
não sobra mais coragem
neste corpo exausto
tímida e mansa não sei pedir
o abraço que mereço receber"

sexta-feira, 17 de abril de 2015

volta, Binho
num guento mais abraçar travesseiro
tomar café feito por mim
não ter quem me espere quando eu saio do banho

sério, Binho, volta logo
num guento mais ter insônia
fritar bolinho a noite inteira
abraçando travesseiro
não ter quem esperar sair do banho

Binho, volta antes que eu quebre algum copo
que eu manche o piso,
que eu esqueça a torradeira ligada,
que eu bata o carro

Binho, volta,
eu tô ficando insana
o tempo não tem feito as coisas mais fáceis
e eu num guento mais abraçar travesseiro

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Prosopopeia
 
1) As paredes da casa espiam a minha solidão. Tecem uma conversa muda sobre como a casa não faz sentido sem Bruno. 

2) O sofá da casa se compadeceu. Abraçou-me solidário e desinteressado, ciente de que era um abraço incompleto, porque não era o abraço de Bruno.

3) As janelas estremeceram porque o vento gritava. O vento vinha me dar um recado, arrebatar-me na mesma entoada do desassossego que Bruno deixara, contar-me que um pouco do mundo partilhava da mesma inquietude. 

terça-feira, 14 de abril de 2015

Ana começara a escrever um livro. Intitulara-o Nove formas de ser só. Sim. Ser só tem graduações e maneiras. É uma ciência, exige procedimento. Ana estava disposta a destrinchar as formas de ser só. Por enquanto, só tinha o título, e a solidão. E também uma amigdalite que surgira há dois dias. Mais uma de muitas, o que obrigara Ana a aprender a se curar. Adoecer, tratar-se e curar-se só é de um empoderamento imenso. Da ciência rústica à ciência refinada de ser só: Ana desconfiava que sabia e aprenderia muito.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

fazia tempo que Clara não sabia o que era ter um homem doce. Clara tinha estabelecido que se apegaria a aspectos aleatórios, nos homens. sabia qual seria o fim da história se passasse a vê-los como homens-homens, então se distraía com qualquer coisa que elegia neles para sustentar o resto do que eles eram sem atentar para o resto do que eram: a beleza, as tiradas bem-humoradas, os músculos, os esportes que praticavam, o gosto musical, as conquistas profissionais. os homens seriam um objeto para seu deleite: corpo, entretenimento, admiração estética, pretexto literário.
Bruno era lindo. lindo. Clara sabia que a beleza, muitas vezes, é só uma promessa. não apenas uma promessa que não se cumpre, mas uma promessa que se revela o oposto. por isso, preferia que a promessa continuasse promessa. Clara conhecia bem a tragédia que viria depois da beleza, depois dos músculos, depois das tiradas de humor, depois do gosto musical, depois dos esportes que praticavam e depois das conquistas profissionais. Clara previa, a todo o tempo, a miséria que se anunciava depois do encantamento, e zelava para não ultrapassar jamais o encantamento. aprendera a deixar os homens e a deixar que os homens a deixassem. permitia-se tê-los, permitia-lhes que a tivessem. vinha se permitindo mais, e vinha sendo menos permissiva. Clara havia tomado as rédeas de si. os homens a tinham por breves momentos, mas era somente Clara a dona de seus desígnios. o medo dos homens era o que mantinha em Clara uma espécie de integridade protetiva, uma espécie de sustentação emocional, e Bruno a desmontou, porque era carinhoso. e doce. sutil, pacífico. Clara era um bloco de caramelo duro, que resiste à força, mas não ao calor. Clara era dura, e doce.
Bruno saiu do banho e foi beijar Clara. é bom o beijo de quando se sai do banho. a gente sai do banho refrescado, novo. e o beijo fica assim, também. fica até mais puro. Bruno fazia Clara chegar mais perto da própria pureza. uma pureza abandonada, descrente. Bruno era perigoso porque, muito provavelmente, faria Clara amar de novo. baixar a guarda. declinar a guerra fria que havia travado com os homens. no entanto, Bruno, que representava um risco, fazia Clara recuperar a confiança em si mesma. entregava-lhe as chaves do carro, as chaves da casa, acreditava que Clara pudesse cuidar das suas coisas, não como uma detentora apenas, alguém que cumpre ordens e que está sendo testado, mas como uma pessoa simplesmente capaz de gerir a vida prática. por si, sem crivo e sem ser avaliada. estar com Bruno era como ser embalada por uma melodia de paz, de reconciliação. pensar em Bruno era ouvir Corinne Bailey Rae, sentir-se renovada, saída do banho, beijando refrescante. Bruno era perigoso, porque era perigo sem ameaça.

sábado, 11 de abril de 2015

Binho na varanda é lindo
coçando a perna dos mosquitos
mexendo com os pelos do peito pra se distrair
sem camisa bebendo cerveja no copo de requeijão

Binho na varanda é lindo
conversando comigo sem olhar pra mim
com a mão no queixo de preocupação
e o jornal no colo

Um dia eu quis casar com Binho
ver Binho fazendo coisas de marido
tirando o ar da bomba
consertando o encanamento da pia da cozinha
trocando o chuveiro, a torneira, a maçaneta
sendo impaciente comigo

Binho  é um pecado que eu não resisto
Binho na varanda é lindo
e me paralisa

Binho me paralisa
sem trazer paz

sexta-feira, 10 de abril de 2015


amar é certeza e risco

quinta-feira, 2 de abril de 2015

diálogos inescrupulosos
 
 
- estou surpreso com o modo com que você tem lidado com todos esses fatos, parece que você realmente quer que as coisas deem certo para mim.
 
- eu não quero que as coisas deem certo para você. eu quero que as coisas deem errado sem a minha interferência.

terça-feira, 31 de março de 2015

Clarinda amava homens impossíveis. Eustáquio, por exemplo, seu noivo, era um desses. Clarinda sabia que Eustáquio viveria bem sem ela. Que qualquer pessoa é capaz de viver bem sem outra. Sabia disso e se empenhava para que Eustáquio crescesse, para que continuasse estudando e galgando os melhores postos no trabalho. Eustáquio cresceria mesmo sem Clarinda. Clarinda sabia disso, mas não conhecia outra forma de amar. Amar, para Clarinda, era fazer com que o outro se realizasse. Amar, para Clarinda, era cozinhar torta de limão, bolo de cenoura, estrogonofe de carne, canja de galinha. Amar, para Clarinda, era buscar ou levar alguém de um lugar a outro. Era fazer calor na barriga de Eustáquio quando Eustáquio tinha dor de barriga. E fazer massagem nos pés de Eustáquio quando Eustáquio se sentia cansado. Amar, para Clarinda, era dizer coisas engraçadas e curiosidades como Você sabe o que na verdade é o "foie gras"? Era fazer dancinhas no carro quando tocavam as músicas que ela gostava. Era degustar o silêncio doce de estar ao lado de Eustáquio em uma estrada para qualquer lugar. Era ser feliz para transmitir alegria para Eustáquio. Amar, para Clarinda, era fazer pelo outro. Não exigir. Prover para si mesma o que necessário fosse. Porque Clarinda se sentia forte, entendedora das coisas, dos seres e dos acontecimentos, Clarinda se julgava mais apta a suportar a dor. Clarinda, ao lado de Eustáquio, poderia suportar dores ainda mais fortes que os abandonos do noivo. O abandono nem sempre é uma lagoa imensa e remota de esquecimento e indiferença. Existem abandonos agudos, frestas no querer. Eustáquio era um homem de abandonos. Um homem real, demasiado real. Um homem real, mas impossível. Clarinda, entendedora que era das coisas, dos seres e dos acontecimentos, sabia que amava homens impossíveis. Sabia que Eustáquio era um desses. Mas se atirava àqueles homens e como uma pedra, um pilar, sustentava-se dentre os abandonos, como alguém que exercita um músculo. Resistia. Os homens impossíveis eram, para Clarinda, seus exercícios de resistência. E sua alma, como os músculos, criava fibras e se revigorava a cada impossibilidade que lhe proporcionavam seus homens impossíveis. Os abandonos não deveriam ser evitados ou vencidos. Era preciso ser íntima deles, caminhar lado a lado, molhar o pé no lago do abandono, mergulhar no rio de abandonos, trazer os abandonos consigo e até acolher os abandonos. E Clarinda repetia muda para si mesma: ser uma rocha e não deslizar, ser uma rocha e não deslizar.

quinta-feira, 5 de março de 2015

eu te amava
mas passou

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Eu sei,
meu bem,
muito bem,
o que pensas de mim

Sei também,
meu bem,
que te pesa minha falta,
mas que, entrelaçado a tua saudade,
se espalha um desejo de vingança,
um impulso de ameaça para a qual não tens coragem

Sei bem,
meu bem,
o que pensas de mim

Conheço tuas queixas,
sei que tens dito
aos outros
que tenho sido a mais desprezível das mulheres,
a mais indiferente, a mais bruta, a mais cruel,
que tenho sido ácida, amarga e estúpida

Não sei bem,
meu bem,
como te dizer,
que desconheço amor sem dúvida,
que não sei amar sem resistência,
que sou atravessada por forças díspares,
que tudo em mim é irreversível

Incomodo-te
porque não disputo o domínio
porque tenho a liberdade como condição
e liberdade, para ti,
é como não ter uma casa
para onde voltar

Vês na liberdade o abandono
quando nela vejo a sedução do imponderável

Meu bem,
não te vejo em tudo,
há momentos em que te esqueço,
não me vem teu nome,
não me vem teu rosto;
há, sim, momentos em que não existes

Tens de pensar,
meu bem,
que se há relutância na minha conduta,
se há rudeza em minhas palavras,
há também muita verdade:
não há de fato nada
quando supões omissão

Tu te intrigas
quando afirmo
que não é da mágoa
que vem minha dureza

E tu, mais solitário que eu e minhas buscas,
te insurges bravio,
como quem vem de uma rebelião ensaiada,
dizendo
que só ofereço crítica
quando esperas de mim compreensão

Tens de entender
que minha crítica é meu zelo
é resultado de meu tempo, de minha análise, de minha reflexão

minha crítica é um corte cirúrgico nos teus dilemas, nos teus equívocos
e nos teus erros

minha crítica é também um prazer que cultivo,
e uma forma de cuidado,
meu diálogo, meu contato

se te critico é porque te compreendo
(porque exercito ver como vês)
e compreender não é aceitar

minha crítica não te abona
não exalta tuas virtudes
não perdoa quando queres perdão

minha crítica pede a tua prudência
mas só o que vês é
minha crítica te ferindo quando minha pretensão não é ferir

minha crítica é o que nos põe à prova,
é o que te desmonta,
é o que nos desconstrói,
é o que me interessa

minha crítica não dá o socorro que tu pedes
mas minha crítica é a delicadeza que tu não compreendes
- a única delicadeza que dedico
tu não acolhes

Eu sei bem
o que tens pensado,
o que tens dito aos outros,
que tenho sido a mais desprezível das mulheres,
a mais impetuosa, a mais bruta, a mais feroz

Pois saibas bem,
meu bem,
que tenho sido
a mais verdadeira das mulheres, a mais fiel

porque o pouco de doçura que tenho
é para ti que guardo
nos rasos sonhos que sonho
é tu quem figura
o pouco, muito pouco, que tenho
é a ti que dou

e ainda que eu não te satisfaça
quando, parecendo resignada, me ofereço
é com a parte de mim mais determinada que o faço
se te pareço agressiva,
é que a parte de mim que te alcança teve de vencer as correntezas adversas, minhas forças díspares,
 e chega a ti desmedida
onde já não há oposição

mas tu és um homem,
que como os outros,
não vê beleza na escassez

és um homem que,
como os outros,
ao meu lado,
só vê ausência
na ironia do irremediável

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Marcel agia como se estivesse convicto de que tinha bons motivos para fazer o que quer que fosse. Suponho que Marcel tenha chegado a essa conclusão em algum momento distante, e de maneira subterrânea. O fato é que, depois dessa sentença, Marcel jamais revisitara esse pensamento. Porque Marcel refletira em um momento originário, Marcel não voltaria a refletir jamais. Marcel agia obstinado, acreditava que fazia escolhas importantes. Marcel tinha - seus - bons motivos para os atos ilegítimos. E quando apanhava da vida - sem glória - pensava, no seu íntimo - suponho eu -, que se a vida lhe batia assim tão corriqueira, tão grave e tão destinada, é que a vida só batia em quem era capaz de suportar. E suportava, sem carma nem cruz, sem prazer nem dor, o que julgava ser seu prêmio. Apanhar da vida, talvez fosse, para Marcel, sua própria glória, ou, ainda, a única espécie de troca que conhecia.
 
Marcel era a imagem desfigurada de um homem, a personificação da iniquidade. A Marcel, nem choro nem vela. Nenhum lamento ou comiseração. Apenas a vida que batia sem arrebatar.
 Esboço desconexo de um romance político I

 Teu nome só tem duas letras
 e é tão leve quanto o ar
 uma brevidade boa de se dizer
 um rio que corre
 um suspiro que se desmancha
 um instante mínimo,
 tão breve quanto teu nome
 e tão presente quanto o ar

 Um incêndio manso nos tomou
 Um incêndio que não destrói
 ou que só destrói o que há de mau
 e prepara o campo
 para reconstruirmos dentro de nós
 um mundo novo em paz

 Traímos a guerra
 nossos povos
 nossos pais

 Porque obedecemos
 porque nos omitimos
 porque jogamos o jogo
 (ou porque nos convencemos da mesma ira)
 os credos viraram bandeiras, partidos, milícias e logo viraram sangue

 Mas em um território neutro
 -bandeira branca-
 vivemos um intervalo de lucidez

 Na guerra em que nos colocaram
 estou do lado oposto ao teu

 Mas na trégua
 somos amantes

 Estabelecemos
 de modo perspicaz e tácito
 que entre nós
 não haveria
 vítima
 ou algoz

Quando amantes
fomos a trégua

 E eu só pensava:
 como é difícil
 não importar
 a guerra
 para dentro da gente

 E eu fico agora aqui
 a imaginar
 as explosões no céu
 as explosões no chão
 as noites de festa e cegueira de Tel Aviv
 a lógica da tua língua que não sei falar

 O amor é uma paz no meio da guerra
 O amor é uma guerra em meio a outra

O conflito
 a promessa
 a terra
 a fronteira
 a religião
 o ateísmo
 o deserto
 a fúria
 o refúgio
 a descrença
 a origem
 a etnia
 o novo
 a guerra
 a paz:
 A gente nunca é uma coisa só.