Tenho ares de mulher devastada pelos anos. Aparento ter vinte eras a mais que o tempo de fato vivido. As pessoas não me dizem, mas sou perita na arte do não-dito. Eu mesma não aprovo o modo de vida dos outros, mas não os faço viver sob o julgo de minha reprovação.
Não me fazem falta, as amizades. Tenho a casa, tenho a João, o casamento. Se me falta vaidade para o corpo, sobra-me a dedicação e o gosto em cuidar do que me pertence de direito. Talvez João não saiba dizer o que as paredes e os cômodos da casa testemunham. Vivo o casamento, João, a casa. Não sou resignada, sou feliz. Penso que João não acredita em minha felicidade, já não faço mais esforços para convencê-lo.
Pouco conheço de João, é bem verdade, no entanto sei de todos seus hábitos e preferências. Horários bem marcados, sobriedade, disciplina. Admito que pouco conheço de João - um grande mistério sem mistério algum, porque não quero desvendá-lo. Tenho uma certeza morna de que João também ama a mim, ou pelo menos acostumou-se e me aceita, o que não é muito diferente de amar. É um homem bonito, como dizem, "bem conservado". Eu e o tempo cuidamos bem de João. Às vezes me pego a pensar quem de nós partirá primeiro. Pelo andar das coisas, imagino (e desejo) que seja eu. Vejo João só, nesta casa. João ficaria ainda mais charmoso e atraente viúvo. A solidão presumida lhe cairia bem, apesar de João não ser dado a sofrimentos e lamentações.
Quanto a mim, só posso dizer que sou uma mulher realizada. Tenho a João, ele tem a mim, nos bastamos.