cartas litorâneas I
no tempo em que não nos comovia a cegueira do mar, seguimos os passos que nos levariam até aquela morte absorta. tu seguias os meus, eu seguia os teus, nos revezávamos no exercício da sinuosidade, nos desencontros e compartilhávamos da mesma falta de um norte. me evitaste por um breve instante e logo em seguida disseste que nunca estive tão bonita a teus olhos. emudeci, quis desculpar-me pela audácia das outras tardes, em que tive de negar-te abrigo do vento e do descaso. a audácia de ser tanto e tantas sem ti. talvez absorver a perenidade das coisas, talvez enobrecê-las com meus instintos, talvez ferir-te uma vez mais para que pudesses amar-me do mesmo jeito persuasivo com que proclamava tuas teorias, para que me convencesses, à força, de que me amavas tanto quanto a elas. tu me conduzirias até a beira daquele absurdo no qual estávamos inseridos, tu discorrerias acerca da mundaneidade daqueles nossos momentos. então, eu me faria submissa, pouco caprichosa, entendedora de teus ditames - os outros diriam compreensiva e doce - até que numa manhã chuvosa te visses repleto de mim: odor, vestimentas, sentidos. até que tu não soubesses como dar um passo atrás para fugir daquela morte inevitável em direção à qual caminhávamos. até que tu te desses conta de que aquela morte era a tal beira do absurdo para que tu me conduzias. a morte, meu caro, ou alguma outra espécie de plenitude para nós.