domingo, 20 de março de 2011

cartas litorâneas III

a praia assim em dias nublados, em tons de cinza e marfim, é mais desnuda. nos dias de sol, há muitas cores, que nos distraem da verdade. em dias como este, a verdade nos parece inadiável.



seria mais excitante se você me fosse um estranho total e não soubesse nada sobre mim. porque cada coisa que se sabe sobre mim é tudo, porque carrego tudo o que sou em tudo o que sou - dos pedaços de unha cortados, dos cílios que me despencam dos olhos, ao poço remoto no coração.



está e sempre esteve tudo exposto. só que antes não havia seus olhos sobre isto o que sou, sobre este tudo de mim à mostra. então, não sei se devo instalar cortinas em volta de toda esta coisa revelada ou se devo te apontar e narrar esse tudo, me desculpando, me justificando ou me enobrecendo.



estamos lado a lado, de frente para o mar. de tempos em tempos, entre um silêncio e outro, olho arredia, de soslaio, para teu rosto, desço os olhos para teus braços e tuas pernas e Meu Deus, como você existe assim existindo e ponto, sem dúvidas, assim matéria, coisa certa, edificado. penso e desvio os olhos, de você para o mar, do mar para os seus braços pernas rosto, areia, céu, tudo muito rápido, que meu pensamento não tem linha, é aparição desordenada, que eu não quero que você perceba que eu te olho assim, com tanta incompreensão, que eu queria que fosse você quem olha e deseja e treme. mas você é firme, ancorado na areia. e eu querendo que eu quisesse te evitar, e você tranquilo pensando em qualquer coisa sem tanto pensamento, qualquer coisa menos emaranhada e fácil que eu.

5 comentários:

CabecaVazia disse...

..."entre um silêncio e outro"

Caramba! Quase ou praticamente ninguém usa isso. Por outro lado, me é completamente familiar. Um título de um disco, belíssimo, de um compositor/músico mineiro muito bom. Esse disco é uma peça musical. Um violão, uma flauta e um violoncelo. Apenas.
"...Existem os atos de primeira intenção. Feitos da necessidade íntima de serem criados, tão naturais quanto o alimento e a água que nos permitem viver: o ideal do artista entre um silêncio e outro."
Engraçado isso, né? Coincidência??

Nocturna disse...

oi, márcio!
ahaha. não, eu não conhecia o disco, mas vou procurar conhecer. obrigada pela dica.
quanto a coincidências, o "que mim" do final foi uma tentativa frustrada minha de algo próximo a uma construção feita por manoel de barros. foi despropositadamente que assim escrevi, mas antes mesmo de publicar vi a estrutura em um verso dele. confesso que achei que não soou bem, ficou estranho, mas ainda não me incomodei o suficiente para substituir por um "que eu".
(desabafo da autora, rs)
beijo!

CabecaVazia disse...

Eu nem notei.
Gosto do seu estilo de escrever.

Rod disse...

"nos dias de sol, há muitas cores, que nos distraem da verdade. em dias como este, a verdade nos parece inadiável."

odeio esta verdade. mentira, não a odeio. desgosto ter de a viver, mas ainda assim ela é sempre libertadora. Acho que são poucos os lugares mais apropriados para pensar do que à beira do mar num dia de chuva.


Tenho isto nos favoritos do meu navegador sem saber o porque, mas admito gostar do que li.

Rod disse...

Bem, parece-me que tens algo que ver com o Elf Pie?