terça-feira, 31 de março de 2015
Clarinda amava homens impossíveis. Eustáquio, por exemplo, seu noivo, era um desses. Clarinda sabia que Eustáquio viveria bem sem ela. Que qualquer pessoa é capaz de viver bem sem outra. Sabia disso e se empenhava para que Eustáquio crescesse, para que continuasse estudando e galgando os melhores postos no trabalho. Eustáquio cresceria mesmo sem Clarinda. Clarinda sabia disso, mas não conhecia outra forma de amar. Amar, para Clarinda, era fazer com que o outro se realizasse. Amar, para Clarinda, era cozinhar torta de limão, bolo de cenoura, estrogonofe de carne, canja de galinha. Amar, para Clarinda, era buscar ou levar alguém de um lugar a outro. Era fazer calor na barriga de Eustáquio quando Eustáquio tinha dor de barriga. E fazer massagem nos pés de Eustáquio quando Eustáquio se sentia cansado. Amar, para Clarinda, era dizer coisas engraçadas e curiosidades como Você sabe o que na verdade é o "foie gras"? Era fazer dancinhas no carro quando tocavam as músicas que ela gostava. Era degustar o silêncio doce de estar ao lado de Eustáquio em uma estrada para qualquer lugar. Era ser feliz para transmitir alegria para Eustáquio. Amar, para Clarinda, era fazer pelo outro. Não exigir. Prover para si mesma o que necessário fosse. Porque Clarinda se sentia forte, entendedora das coisas, dos seres e dos acontecimentos, Clarinda se julgava mais apta a suportar a dor. Clarinda, ao lado de Eustáquio, poderia suportar dores ainda mais fortes que os abandonos do noivo. O abandono nem sempre é uma lagoa imensa e remota de esquecimento e indiferença. Existem abandonos agudos, frestas no querer. Eustáquio era um homem de abandonos. Um homem real, demasiado real. Um homem real, mas impossível. Clarinda, entendedora que era das coisas, dos seres e dos acontecimentos, sabia que amava homens impossíveis. Sabia que Eustáquio era um desses. Mas se atirava àqueles homens e como uma pedra, um pilar, sustentava-se dentre os abandonos, como alguém que exercita um músculo. Resistia. Os homens impossíveis eram, para Clarinda, seus exercícios de resistência. E sua alma, como os músculos, criava fibras e se revigorava a cada impossibilidade que lhe proporcionavam seus homens impossíveis. Os abandonos não deveriam ser evitados ou vencidos. Era preciso ser íntima deles, caminhar lado a lado, molhar o pé no lago do abandono, mergulhar no rio de abandonos, trazer os abandonos consigo e até acolher os abandonos. E Clarinda repetia muda para si mesma: ser uma rocha e não deslizar, ser uma rocha e não deslizar.
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