terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Havia sido difícil e demorado lavar a louça, naquela manhã. Dobrar as roupas, guardá-las no armário, lembrar a história de cada um daqueles móveis. Séculos e séculos de um tempo que Helena simplesmente desconhecia. Todos eles escolhidos por Julio, que, claro, sempre a consultava e fazia depender de seu aval, mas faltava-lhe o tato, o refino, a decisão. Havia música, como em todas as manhãs, o som do vinil, repleto de ruídos que enriqueciam as canções em vez de prejudicá-las. Os ruídos, pensava Helena, eram o retrato de um tempo passado em que não vivera, mas lá estavam para reafirmarem que de nada vale o esquecimento para aqueles que não deixam de sangrar. Os ruídos talvez fossem ruínas sonoras. Helena aprendera com Julio a admirá-las, a tocá-las, e, sobretudo a distigüi-las. Rituais, Helena era apegada a rituais: lavava primeiro os copos, depois os pratos e, por fim, os talheres. O quintal era um cenário de devassidão. Se Julio pudesse olhá-la dentro dos olhos, o veria. Folhas secas, milhares delas, uns tantos gravetos, e outros abandonos pequenos. Helena tirava como lição que o exercício do desprendimento ocorria de maneira natural no lhe era exterior. Por quê, afinal, consigo, não poderia ser assim? Não era o caso de deixar de sofrer, disso Helena não se queixava. Eram a coluna deveras encurvada e a vista turva que a incomodavam. "Preferia ser coxa", pensava Helena, que o pensamento é o primeiro passo para transpor-se do que não é ao que é. Pensou nessas e em outras coisas. Quis queimar aquelas folhas secas, fazer uma fogueira e dependurar-se sobre elas, como uma auto-inquisição - "Devo é ser uma bruxa". Colecionava ervas, temperos, essências e artigos de pintura, embora nunca soubesse o que fazer com eles. Gostava de tê-los, gostava de cuidá-los. Diariamente conferia cada artigo, organizava-lhes a ordem. Alinhava as compotas - laranja da terra, mamão verde, abacaxi. E também as conservas que agradavam tão-somente ao paladar de Julio. Quiçá houvesse Ele ou outro qualquer na casa para bagunçar-lhe as obstinações. Tanto esforço por tão pouca louça, Helena fazia. Retirava as bandejas da arca, os talheres de prata, também. Lavava, enxugava, guardava. E havia as gavetas, eram tantas! Tirava-lhe o conteúdo, sorria-se ao encontrar sempre os mesmos postais, vindos de longe, de lugares onde jamais saberia. Guardava em segredo uma carta de amor de cinema, endereçada à Srta. Mattos Freire, datada de 1948. Uma antiga moradora, talvez. Perdeu a conta de quantas tragédias íntimas narrara para o fim daquela história. Afinal, o que é o amor senão uma penosa eternidade prestes a deixar de ser? "E se a tal Srta. fosse coxa? Coxa e amada, que ironia!" O licor de pitanga sobre a mesa, porque era mais doce superar as noites se houvesse um cálice de licor para aquecer-lhe o estômago e acalmar-lhe as vísceras. Tantas formas de morrer, tantas mortes absurdas - um tropeção e bate-se a cabeça no meio-fio, um choque elétrico de tamanhã carga, um susto qualquer. E lá estava Helena a cada dia mais viva, com uma certeza que se confirmava quando observava sua pele elástica, seus olhos inevitavelmente abertos, ávidos. "Por que tanta disparidade entre a figura do espelho e meu cansaço?", perguntava-se Helena. Varria a casa, encerava os móveis. Mais tarde, encerava-os novamente. Desempoeirava livro por livro. Jamais os abria. Uma forma de respeito, na concepção distorcida de Helena sobre todas as coisas. Livro por livro, letras mortas, sucessivas mortes na estante. Inúmeras delas atraídas por um abismo mais fundo que o peito de Helena mulher.

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